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ROBB REPORT – Secondhand: o luxo de segunda mão vira moda e o mercado internacional cresce na era da economia circular com a entrada das próprias marcas de luxo. Algumas já começaram a vender peças usadas em suas lojas

Mudou o mundo ou mudamos nós? A verdade é que tudo muda em todo lugar ao mesmo tempo, como se deduz a partir do título do vencedor do Oscar de melhor filme neste ano. Mudar é o que fazemos para não morrer. E as empresas, como nós, também.

As marcas de luxo reelaboram seu passado, e o mercado acolhe esta invenção. Em dezembro de 2022, a marca suíça de relógios Rolex anunciou que criara um selo de certificação, intitulado Certified Pre-Owned, para dar vida nova a suas peças antigas. Com design retrô, o selo caminhava ao encontro do conceito perpetual da marca, isto é, à ideia de que seus produtos nasceram para durar muito tempo, quem sabe para sempre. Era a Rolex tomando para si o destino de seus relógios de segunda mão.

Em meio à pandemia, os aumentos dos preços dos relógios no mercado secundário aceleraram acentuadamente. Com muito dinheiro e sem poder sair de casa, os consumidores das gerações Y e Z descobriram o hobby caro de colecionar relógios suíços. A ascensão e queda dos valores das criptomoedas também se correlacionam com os preços dos relógios usados, segundo o site especializado Chrono 24. O Daytona em aço, um dos modelos mais cobiçados da Rolex, chegou a ser vendido no começo de 2022 a US$ 47 mil no mercado de segunda mão nos Estados Unidos, enquanto um novo sairia por cerca de US$ 14,5 mil, simplesmente porque não havia exemplares disponíveis nas butiques. Várias marcas, e a Rolex em especial, vivem esse momento peculiar. Seus clientes esperam até dois anos na fila. A falta de oferta se explica pela ausência de componentes devido ao isolamento da pandemia e ao excesso de procura. Em momentos de crise, relógios mecânicos de marcas confiáveis tornam-se um ativo seguro.

Criou-se uma nova classe de consumidores, a dos colecionadores, que fazem o luxo pesado se comportar como arte. Um novo TING Group e da WatchBox, uma das maiores vendedoras de relógios usados do mundo, aponta os exemplares de luxo como uma classe de ativos alternativa para ações, títulos, arte e vinho. Segmento mais alto do mercado primário, os relógios, as joias e bolsas são criados com a intenção de transmitir uma mensagem, não apenas como acessórios. Peças únicas tornam-se parte de conversas culturais e seu preço é cada vez mais separado dos custos de material e das fórmulas de margem. Isso está se filtrando para o mercado secundário, onde esses itens mantêm seu valor como colecionáveis. Em ambos os mercados,os consumidores compram como um investimento a pedir certificação.

O selo do Rolex de segunda mão será obtido de maneira direta. Qual- quer pessoa que possua um exemplar, mesmo sem caixa e documentação originais, poderá procurar um distribuidor autorizado. A peça terá a autenticidade atestada e passará por uma revisão. O certificado virá di- retamente da sede da fabricante em Genebra e dará uma garantia de dois anos para o comprador. E os relógios certificados serão vendidos de duas maneiras: nas lojas, haverá um espaço separado destinado às peças de segunda mão. E os usados também poderão ser vendidos no e-commerce da loja autorizada – hoje a venda só é feita presencialmente.

CERTIFICAÇÃO NA ROLEX

O programa terá início nas butiques Bucherer em seis países europeus (Suíça, Áustria, Alemanha, França, Dinamarca e Reino Unido). No Brasil, a previsão é que aconteça a partir do segundo semestre de 2023. Todas as lojas autorizadas poderão fazer a certificação e a revenda das peças. Mas os revendedores poderão não aceitar determinadas peças, de- pendendo do estado e da procedência. E elas devem ter no mínimo três anos de fabricação, para evitar o incentivo à revenda por parte de quem vê o objeto apenas como um ativo financeiro.

O mercado secundário de relógios de luxo cresceu para US$ 24 bilhões em 2022, em comparação com o mercado primário de varejo, que valia US$ 55 bilhões. O mercado de usa- dos deve aumentar 9% ao ano, para US$ 35 bilhões até 2026, à medida que os preços aumentem e mais pessoas comecem a colecionar relógios, de acordo com uma previsão do Boston Consulting Group.

A LuxeConsult, uma empresa suíça independente de análise e consultoria, foi mais longe. Ela previu que as vendas de relógios de luxo usados ultrapassarão o mercado primário de varejo até 2033, com vendas subindo para US$ 85 bilhões. Não é algo, contudo, em que todos os especialistas no assunto apostem suas fichas. Ex-presidente da Louis Vuitton no Brasil, Carlos Ferreirinha pondera não existir um horizonte seguro para essa ultrapassagem. “O mercado para o second hand vai crescer muito? Sim. Vai se tornar protagonista? Tenho dúvidas”, diz ele, que atualmente preside a MCF Consultoria. “As marcas de luxo estão se movimentando nessa direção, algumas mais, algumas menos. Algumas inclinadas a fazer movimentos com mais ousadia nessa direção, outras, até a comprar empresas. Mas o second hand é uma preocupação para as marcas de luxo? Não. Isso é uma expansão, diversificação, uma nova oportunidade de negócios. Não chega a dar susto ou medo, em hipótese alguma.”

Ferreirinha vê nas marcas de luxo as mais notáveis quando se considera driblar o tempo a seu favor. A Louis Vuitton, por exemplo, jamais hesitou em se transformar. Passados 170 anos desde a sua fundação, ela é a número 1 entre todas as empresas da França, mesmo que o universo contemporâneo seja ditado pelas façanhas da Apple ou da Tesla. A Hermès, que teve em 2022 o maior faturamento dos seus quase 200 anos de existência, já aprendeu a fazer bolsas a partir de couro obtido com cogumelos. A Mercedes Benz interromperá a produção de veículos de combustível fóssil até 2030, para dar lugar a carros 100% elétricos ou de combustível renovável. “É a grande inteligência das marcas de luxo”, crê Ferreirinha. “Com os novos tempos vêm as novas possibilidades de consumo, e essas em- presas se adaptam a isso, algo realmente maravilhoso.”

PARA FREAR FALSIFICAÇÕES

Se você não pode vencer seus inimigos, junte-se a eles. Em setembro do ano passado, as marcas Gucci, Burberry e Balenciaga sinalizaram sua entrada no mercado de segunda mão, já que uma economia instável havia levado os consumidores atualizados em moda a procurarem opções mais acessíveis do que o preço cheio dos lançamentos. Com isso,a Gucci retomou o primeiro lugar entre os consumidores de alta moda no mundo, segundo a plataforma de revenda The RealReal em seu relatório Annual Luxury Resale Report.

De modo a aumentar a vida útil das peças da Balenciaga e frear as falsificações, o conglomerado Kering, detentor da grife e também de Gucci e Yves-Saint Laurent, adquiriu 5%
de participação no site de revenda de luxo Vestiaire Collective. Referência no mercado de revenda, o brechó ago- ra tem o conglomerado Kering como um de seus acionistas. A plataforma Reflaunt fica responsável pela logística: negocia diretamente com quem quer vender peças da marca.

As lojas físicas da Balenciaga tornam- -se os pontos de entrega e de retirada dos produtos. Quem revender uma peça poderá escolher receber o dinheiro ou ganhar crédito para gastar na própria Balenciaga. Os itens passarão por um processo de curadoria e autenticação antes de serem disponibilizados para venda. Segundo a marca, as peças serão distribuídas para uma rede de marketplaces. A Balenciaga descreveu a entrada no mercado de revenda como um “programa de circularidade” de seus produtos. Com esta adesão, se pode esperar que mais pessoas tenham acesso a produtos da grife, quem sabe até mesmo àquele tênis da marca que aparentava estar sujo, já vinha com rasgos de uso e tinha edição limitada.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), US$ 500 bilhões em roupas e acessórios são descartados em lixões e aterros por ano. Muito em razão disso, a estilista britânica Stella McCartney apoia o mercado de vendas de peças de luxo de segunda mão. “Luxo é seu produto ter longevidade. Quando alguém compra um produto Stella McCartney, espero que possa deixar para que outra pessoa o use”, afirmou a designer, que recentemente fez uma parceria com o site de recommerce The RealReal para colocar peças usadas de sua grife à venda. “Uma das coisas mais sustentáveis que um designer pode fazer é criar peças que as pessoas não vão querer jogar fora. Isso também é uma oportunidade de negócios.” De acordo com a plataforma de revenda ThredUp, a expectativa de crescimento para o mercado de seminovos é de 127% até 2026. No Brasil, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o Sebrae, a abertura de estabelecimentos que vendem pro- dutos second hand aumentou 48,58% entre 2020 e 2021, com a criação de mais de duas mil novas empresas nesse segmento, o maior número em seis anos.

Joias e relógios de luxo representam parte importante desse mercado no Brasil, como explica Giovanna Landi, gerente de produtos da Orit, empresa que há 63 anos promove avaliação, compra e venda desses itens seminovos. A empresa tem duas lojas físicas em São Paulo e atende on-line. Segundo a gerente de produtos, contudo, há alguns anos havia preconceito quanto à aquisição desses bens: “Mas isso foi se diluindo conforme os consumidores passaram a entender mais sobre a qualidade, a durabilidade e a beleza os produtos secondhand, que oferecem o melhor por um preço muito mais acessível, e também a possibilidade de adquirir peças raras.”

Ainda segundo o Sebrae, há mais de 118 mil estabelecimentos no país especializados em vender roupas usadas. É um número tão expressivo que ajuda a explicar a decisão de grandes grupos de empreender na área. Primeira mulher a assumir o cargo de CEO do Iguatemi, há um ano, Cristina Betts assistiu de perto a essa transformação do consumo dos itens de luxo. Sua filha mais velha, no primeiro ano de faculdade, comprou a primeira bolsa Gucci de segunda mão no e-commerce Etiqueta Única, adquirido no início do ano passado pelo grupo. Cristina considera o mercado de luxo perfeito para second hand, já que seu produto, bem feito e durável, atende tanto aos clientes aspiracionais quanto aos que querem vender seus itens de luxo para transformar o guarda-roupa.

A estratégia do Iguatemi é aumentar os pontos de conta- to com os clientes por meio do Etiqueta Única. O brechó de luxo será integrado ao e-commerce Iguatemi365, que, lançado em outubro de 2019, avançou durante a pandemia e hoje registra mais da metade de suas vendas em praças onde o shopping não tem presença física. A expectativa é de que, com a mudança de plataforma tecnológica prevista para abril, a operação on-line consuma neste ano metade do capital investido em 2022 e passe a dar resultado daí a dois anos. A partir de suas experiências com as três filhas, a CEO compreendeu que o cliente não entende mais a separação entre o físico e o digital, razão pela qual o investimento se deu.

Há 30 anos no mercado de luxo, Tânia Wagner comanda a loja de second hand BFF Shop My Closet desde 2014 em São Paulo. Ela, que viu o mercado de segunda mão nascer no exterior, crê que os brasileiros ganharam consciência sustentável e entenderam tanto a necessidade de usar por mais tempo suas peças quanto a de dar a outras pessoas o acesso a esses produtos. “Algo que faz a diferença no meu negócio são as fornecedoras muito boas”, diz. “Hoje, tenho 400 cadastra- das. E só pego peças nas quais confio, que sei serem únicas e originais.”

Juliana Lucki reconhece há algum tempo a importância do mercado de segunda mão. Sócia do estabelecimento de second hand Troca de Luxo na companhia de Fabiana Justus, ela lembra que em 2012, quando criou seu negócio, havia preconceito por parte das consumidoras brasileiras de luxo. “Minha mãe é francesa e na Europa o second hand é comum. Na verdade, me baseei muito no mercado europeu e também no dos Estados Unidos para abrir meu negócio. No Brasil, real- mente não havia essa cultura de você usar uma vez e, quando não quisesse mais, vender aquilo. Lembro de fazer um evento da alta sociedade em São Paulo, no qual uma compradora largou a bolsa que eu vendia ao saber que tinha um mínimo sinal de uso.”

CURADORIA FAZ DIFERENÇA

Ela faz uma distinção importante. Second hand, diz, não é o mesmo que brechó. “Brechó traz coisas antigas. Mas no second hand você está falando de coisas novas e seminovas.” O brasileiro, ela conta, entendia o brechó como aquele estabelecimento que vendia peças de roupa por 10, 20 reais, com cheiro de armazenamento. Mas isso foi mudando. “Hoje em dia, fala-se em second hand como algo mundial. Não é mais uma tendência, é uma realidade que a cada dia cresce mais. Hoje as pessoas acham bacana, cool, ter peças de luxo de segunda mão.”

A grande vantagem do second hand, a seu ver, está na curadoria. Produtos bem selecionados, escolhi- dos e autenticados trazem confiabilidade. “O Troca de Luxo está aí há tantos anos porque as pessoas percebem que a curadoria é muito especial”, acredita. “Tudo também depende da escassez do produto, esgotado nas lojas mas disponível no second hand. E tem a força do upcycling, da moda circular, do consumo consciente, conceitos que existem no mundo inteiro e estão presentes nesse tipo de negócio.”

Fabiana Justus já havia tido experiências com outras empresas de second hand quando começou a vender suas roupas por meio do Troca de Luxo. Ela admirava o cuidado geral com as peças e a rapidez com que, por meio dele, conseguia vendê-las. Até que Juliana a convidou para um café no showroom, em São Paulo, e ouviu suas sugestões. Daí a chamá-la para integrar o negócio, em agosto de 2021, foi natural. Elas planejam abrir um novo e-commerce, embora seu principal canal de vendas seja o Instagram. “A rede social humaniza as marcas, aproxima as pessoas, você cria uma comunidade. E tem um público muito fiel que acompanha. É uma forma de humanizar o luxo, ele vira entretenimento”.

SEM BRIGAR COM AS MARCAS

A sócia de Juliana Lucki identifica em seu consumidor um interesse no que é único, esgotou e não existe mais. E fica feliz ao observar que, ao fazer esse comércio, permite que a moda circule. “Há estudos dizendo que até 2030 o mercado de second hand vai crescer mais do que as marcas de fast fashion. Está em plena ascensão mundial. Antigamente nos viam como ‘concorrentes’ das marcas, mas não somos”, salienta Fabiana Justus. “Quem nos procura vai vender uma peça que não usa mais e poderá aplicar o dinheiro adquirido na venda para voltar a consumir na loja da marca. Trata- se de um mercado muito mais sustentável. Mas é importante alertar as pessoas a procurarem sempre empresas confiáveis, que forneçam autenticação, sejam corretas e se preocupem com a curadoria.”

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